Tenho medo de nunca recuperar completamente essa parte de mim.
De haver sempre esta zona cinzenta, esta atmosfera sufocante que me tira todas as forças quando me tento aproximar.
Não vou dizer que a terapia foi fácil, obviamente houve momentos difíceis, e apesar de me ter ido abaixo umas tantas vezes, sinto-me vitoriosa da maioria do percurso. Mas nada me particularmente assustava.
Eram coisas que eu, de uma forma ou outra, já tinha ponderado, já tinha analisado, já tinha escrito sobre.
A minha postura agressiva como resposta á minha sensibilidade, a minha necessidade de afirmação, de me superiorizar, sendo tudo isto balelas e mecanismos de defesa. A minha relação feia e violenta com o meu pai. A minha relação triste e difícil com a minha mãe. A minha relação tóxica com a minha depressão.
Foram tudo batalhas por si, tudo regiões sombrias do meu cérebro, e sinto-me tão terrivelmente melhor agora. Sou mais feliz, ultrapassei uma depressão com que vivi durante anos, a minha ansiedade está muito mais controlada, até a relação que tenho com a minha família é mais saudável.
Mas há uma coisa, que eu sei que existe dentro de mim, que me arrasa completamente, tira-me todo o controlo, e é um peso gigante que carrego ás costas e constantemente me complica a vida, que ainda não estou pronta para ver.
É paralisante, o meu coração acelera e a minha cabeça começa a andar a roda, apetece-me vomitar, fugir e esquecer, só quero esquecer. Mas mesmo quando esqueci, nunca me abandonou.(amnésia dissociativa)
Eu podia ir direta ao assunto e dizer que fui violada pelo meu melhor amigo quando tinha 14 anos. Mas isso não contextualiza a dimensão e o peso do que existe dentro de mim. O medo, a insegurança e uma raiva gigante. Já fantasiei a espancá-lo até vê-lo inanimado no asfalto, porque de certa forma, é assim que me sinto. Incapaz de reagir.
Pensei que talvez se fosse capaz de escrever sobre isto, talvez fosse capaz de abordar o assunto em terapia, talvez fosse capaz de não entrar em pânico, talvez pudesse finalmente começar a recuperar. Mas o quão alienada me sinto neste momento, apenas por escrever isto, que não traduz 1% daquilo que corre na minha cabeça e no meu peito, é desmotivador. Não sei o que fazer. Portanto farei o que faço melhor quando não sei o que fazer, escrever.
Não estou sozinha quando escrevo, escrever é ter uma conversa contigo mesmo, mas havendo desassociações tão grandes de mim, estou a falar com uma sala cheia. Se perder a força, se parte de mim não aguentar escrever mais, vem outra parte, continua, esmiuça, analisa e obriga-me a refletir, mesmo que eu, sendo eu quem quer que eu seja, não o consiga.
Não sei o que mais me assombra. A experiência que foi o evento traumático, ou a forma como o concilio que há dentro de mim, decidiu que era algo pesado demais para eu lidar, e simplesmente escondeu-me isso. Já não sou uma criança de 14 anos, e não sei se a paz que estou a sentir agora é porque alguma parte de mim tomou o controlo e meteu a outra parte de mim, mais delicada, a descansar um bocado. Porque eu sei que isto não passou, nada na minha vida passou assim por magia apenas por escrever um texto sobre isso. Portanto isto não é diferente, a paz que sinto agora é falsa, é distante.
Mas ao menos estou a ser capaz de tirar isto da cabeça e metê-lo na mesa. E não tem de ser a minha parte sensível a fazê-lo agora, que estou desamparada, essa parte deverá sem dúvida estar presente na consulta, estar presente na vida, mas não necessariamente agora.
Não tenho de estar frustrada por ter uma mente "fragmentada". Por que raio teria de passar a minha vida a comparar-me com outras pessoas?
Se funciona, ótimo.
O que começou este texto, e que acho que seria positivo terminá-lo com, é "tenho medo de nunca recuperar completamente essa parte de mim."
Que parte me refiro? A confiança? A segurança? A estabilidade? Nem eu sei. É mais como uma área bloqueada do jogo. Não sei se é uma boa analogia, mas é o que me vem a cabeça agora portanto há de ser boa o suficiente.
O quão fundamental seria desbloquear essa parte para progredir no jogo? E essencialmente, estarei eu disposta em aceitar o desafio?
Sim, a seu tempo. Talvez não agora, mas a seu tempo.